sábado, 23 de outubro de 2010

Para sempre é composto de agoras

Deu saudade. Sobrou um tempo livre nesta tarde nublada de sábado. Desatolei-me da lama de provas em que um final de bimestre afunda o professor. Arrumei superficialmente meu quarto e minha vida. Agora posso escrever alguma coisa nesse blogue. Reli os primeiros textos e me senti idiota. Fiquei na dúvida se deveria escrever ou não. Decidi que não. Mesmo assim estou escrevendo.

Ando despendendo muitas horas dos meus dias na infinita tarefa de ser feliz. Tinha me esquecido que ser feliz dá um baita trabalho. Que a leveza é cheia meandros. Que a vida é doce dependendo do paladar. Refiz meus planos para o futuro. Reli as páginas dos últimos três meses e as comparei com as dos últimos três anos. Há certa dureza, mas não frieza, na afirmação, no meu olhar, quando disse na frente do espelho – que acabo de imaginar na minha frente – que eu sei muito bem o que quero pra mim. Eu tenho novamente planos. E só se constroem planos quando não se está sozinho. Eu não estou.

Pensar no futuro fortalece o agora. Folheando hoje um caderno antigo achei uma anotação no rodapé. Tenho mania de anotar citações que acho interessantes nos rodapés de livros e cadernos. Coisas que ouço ou leio em qualquer lugar. Estava escrito assim: “Para sempre é composto de agoras”. A internet me ajudou a encontrar o autor. Emily Dickinson, uma poetisa norte-americana do séc. XIX. Ela escreveu mais de 1800 poemas e cerca de 1000 cartas, mas nunca publicou nada, a não ser alguns poemas anônimos. Engraçado, não faço a menor idéia de quando anotei essa frase. Não fazia idéia alguma de quem era Emily Dickinson. Mas li essa frase como se eu tivesse acabado de elaborá-la, como se fosse minha, como se fosse um pensamento formulado dentro da minha própria cabeça. “Para sempre é composto de agoras”. Eu quero o para sempre, por isso a intensidade com que tenho vivido os agoras. E é difícil mesmo, não pensei que seria fácil.  Com paciência, acho que estou aprendendo. Acho que estou crescendo.



terça-feira, 14 de setembro de 2010

Chofer de Caminhão


Eu juro que pretendo manter esse blogue aceso. Fico pensando no que escrever, mas meus pensamentos acabam tangendo aquilo que não posso expressar livremente aqui. Alguns alunos lêem isso aqui. Sabe, isso é um problema pra mim. Eu me sinto reprimido, nem posso escrever muito palavrão ou falar mal deles.

Em um dia ensolarado como hoje, depois de sete aulas de manhã e uma à tarde, uma fome descomunal e a cabeça pesada de tanto pensar seria bom poder ofender pelo menos a metade deles. Não vou fazer isso. Pelo menos não hoje. Esse texto é pra falar de um dia assim. A cabeça cansada e o corpo doendo. Alguém me disse uma vez que o trabalho enobrece o homem. Baita mentira. Olhei no espelho agora pouco, assim que cheguei em casa, lembrei do meu rosto de três ou quatro anos atrás e pensei: “O trabalho envelhece o homem, isso sim”. Estou cansado. Perguntei a um colega quantos anos faltam pra minha aposentadoria. Ele riu e não me respondeu. Acho melhor assim, mais confortante. 


Aí nesses dias em que eu quero jogar tudo pro alto eu me lembro de uns anos atrás quando não tinha conta pra pagar e tinha tempo pro ócio. Deveria ter feito um blogue naquela época. Eu teria tempo pra pensar em mil textos, em várias crônicas, várias piadas, ia escrever muita besteira. Eu teria tanto tempo que me tornaria um romancista. Eu escreveria a história de um homem de quarenta anos, de classe média, que abandona sua profissão de advogado, sua mulher fútil e siliconada, seus filhos egoístas e pervertidos pra se tornar chofer de caminhão. Ele gasta as economias da família em um caminhão Volvo daqueles bem grandões. Um homem brilhante que é meu personagem, largou tudo e caiu na estrada. Eu sempre admirei os caminhoneiros. Quando criança gostava de acenar pra eles nas viagens. Eu esticava o pescoço pra ver como era vida dentro da boléia. Era louco pra subir em um caminhão. Minha mãe dizia que eles moravam lá dentro, só voltavam pra casa de vez em quando. Eu pensava que se tivesse um caminhão grandão daqueles nunca mais voltaria pra casa. O personagem do meu romance, que nunca escrevi (e nem vou escrever), também nunca voltou pra casa, mas nem por isso foi mais feliz.

Lembrei agora da música do Caetano, aquela que o Los Hermanos gravou no filme Lisbela e o Prisioneiro. Eles cantam: “Eu quero a sorte de um chofer de caminhão / pra me danar por essa estrada / mundo afora ir embora / sem sair do meu lugar”. Linda trilha musical de um filme mais ou menos. Eu conheci um grande caminhoneiro. Desses que faz isso há mais de vinte anos. Parece que ele não levava a vida que eu imaginava quando acenava da janela do carro do meu pai. Ou quando assistia Carga Pesada na Rede Globo. Não, eu não quero ser chofer de caminhão. Queria apenas me danar por essa estrada, só isso. Acho que não agüento a solidão de uma boléia. Na verdade não agüento nem a solidão do meu quarto.

PS: Encontrei a frase que meu personagem vai escrever em seu caminhão






sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Cabeça de Tigela

Quando eu era criança meu irmão me chamava de cabeça de tigela. Sempre que saia do cabeleireiro na Rua Vergueiro, bairro do Ipiranga, eu era obrigado a ir até em casa ouvindo suas gracinhas. Aquilo me enfurecia. Meu cabelo, sempre liso, ficava em um formato perfeitamente igual ao de uma tigela ou de um penico. Como se alguém tivesse colocado um penico na minha cabeça e raspado tudo em volta. Um horror! Meu irmão tinha razão e a culpa era toda da minha mãe e daquele cabeleireiro que não me lembro o nome, talvez ela se lembre, preciso perguntar. Ao terminar seu serviço, sempre dizia alguma coisa tipo: “prontinho, agora já tá pronto pra arranjar uma namorada”. Mentira, com aquele cabelo não ia arranjar nunca!

Eu cresci e meu cabelo se transformou em uma das minhas maiores fontes de inquietudes. Eu realmente não sei o que fazer com ele. Tive algumas idéias ao longo da minha adolescência. Lembro de que quando me mudei de São Paulo pra cá achei que tinha que ter o cabelo dos locais. Pronto, mais um horror. Eu achava que tinha que ter cabelo de maloqueiro só porque morava em São Vicente, onde o tipo é bem comum. Olha só, que preconceito. Fiz uma das maiores cagadas nos meus pobres cabelinhos. Prefiro nem descrever como ficou. Estive careca, com uns desenhos tribais feitos artesanalmente com uma navalha. Eu tinha 11 anos, queria ser igual aos meus amigos vicentinos, e, com aquele cabelo esquisito, acabei jogando minha dignidade na vala da Náutica III.

Logo o cabelo cresceu e voltou a parecer um penico. Aos 13 anos arranjei minha primeira namorada na escola. Coisa séria, de andar de mãos dadas, conhecer os pais e tudo. Ou quase tudo. Em quatro ou cinco meses ela me deu um pé na bunda. Fiquei revoltadíssimo. Não pensei duas vezes e raspei a cabeça, às vésperas de ir ao Rock in Rio. Não satisfeito, enquanto o cabelo crescia de uma forma irregular tive a brilhante idéia de colori-lo. A idéia inicial era pintar de verde, claro. Lembro que estava em Campos do Jordão, tentando descolorir meu cabelo primeiro para depois tingi-lo. O clima estava chuvoso e frio e tive que ficar com a cabeça quase enfiada em um aquecedor elétrico pra ver se descoloria aquela joça. Enfim, meu cabelo ficou laranja, com umas manchas esverdeadas e umas mexas loiríssimas. Aquilo sim foi uma grande cagada. Por conta disso, adotei a prática de usar boné o dia todo, até aquela bosta crescer definitivamente, já aos 14 ou 15 anos. 

Fui ser careca novamente, e pela última vez, só quando passei no vestibular. Fizemos um churrasco na casa da minha vó, e todos da festa, um a um, deram uma tesourada nas minhas madeixas. Meu cabelo até estava bonito àquelas alturas. Pelo menos eu estava satisfeito com ele, caindo sobre os olhos e com curvas para todas as direções nas partes de trás. Combinava comigo. Entrei na faculdade careca por conta do trote no churrasco, sai calvo por conta de queda capilar. Envelhecimento, eu acho.

Hoje em dia ainda odeio cortar o cabelo. Eu me sinto ridículo com o cabelo curto, meus alunos percebem a ridicularidade e obviamente me sacaneiam, mas mesmo assim eu corto sempre curto demais. Eu não, aquele cabeleireiro do capeta. Fico com cara de criança. A mesma cara de quando cortava o cabelo lá na Rua Vergueiro. Sempre ganho vários apelidos, que não cabem aqui para não estimular o bullying ao professor. Um aluno hoje me disse que pareço uma criança velha. Adoro a criatividade discente. Odeio esse corte de cabelo maldito.


sábado, 21 de agosto de 2010

O Verde

Minha namorada implica com meu guarda-roupa. Só pode ser amor. Excesso de verde, diz ela. Verde claro, verde escuro, verde limão, verde musgo, várias tonalidades de verde. Poucos azuis, pretos, vermelhos, cor de rosa. É fato, uso muita roupa verde. Não sou multicolorido como ela. E não é de hoje, viu? Aliás, faz muito tempo. Não sei bem o motivo, mas vou tentar encontrar.

Tudo começou com um tênis verde. Um All Star velho que não saia do meu pé, lá por volta do ensino fundamental. Era um tênis surrado, mas muito querido. Acho engraçado como as pessoas estabelecem relação afetiva com as suas vestes. Sei que eu não sou o único. Mas também foi só aquele. Eu gostava muito dele, era confortável, sujo, vivia meio desamarrado, mas era muito feliz no meu pé. Tenho certeza de que ele era. Minha mãe o odiava. Insistia pra que eu fosse com ela escolher um novo na loja. Insistia pra eu calçar outro mais limpinho e novinho, mas eu era resistente, bravamente resistente. Minha mãe tinha dessas coisas de botar o filho pra andar arrumadinho. Hoje ela já perdeu as esperanças, mas reconheço seu esforço de tentar criar dois filhos bem vestidos. Um dia eu cheguei em casa e vi uma caixa de All Star sobre minha cama. Deu um aperto no coração. O que eu mais temia havia acontecido, minha mãe jogara fora meu velho tênis verde. Abri a caixa e vi um igual. Aliás, exatamente igual. Era verde, mas um verde forte, sem aquela cara de desbotado do velhinho. Era um tênis que tentava ser simpático, mas não conseguia substituir seu antecessor. Enfim, todos os meus amigos repararam que meu tênis novo era igual ao velho. Quando o novo finalmente ficou velho, comecei a calçá-lo com mais satisfação. Mas antes que eu me apegasse ao novo velho tênis ele logo ficou maloqueiro demais aos olhos da minha mãe e foi substituído por um exatamente igual. Fui motivo de chacota. Alguns amigos me chamavam de “pé verde” ou coisa parecida. Aí que começou o negócio do verde.

Depois do tênis veio o lance das camisetas. Até alguns alunos já repararam e me perguntaram o porquê de tanto verde. Nem sei explicar. Alguns atribuem ao Palmeiras, mas na minha intimidade sei que não é isso. Também não tem nada a ver com a natureza. Nunca tive muito de eco-chato. Assumi a postura de um professor de geografia que não insiste muito na questão ambiental. Eu é que não vou dizer pro meu aluno fazer xixi no banho pra economizar a água da descarga. Eu vivo por aí queimando gasolina. Nunca perdi uma noite de sono por conta da perda da biodiversidade do planeta. Estou sendo sincero, nem eu, nem você perdemos. Sem falso moralismo ambiental, já joguei muito papel no chão, tomo banho demorado, mas sei muito bem as implicações do aquecimento global. Uso camiseta verde porque meu armário está cheio delas, ué. Só por isso. Não gosto muito de comprar roupa. Meu armário é constituído basicamente por presentes da família ou de passeios da minha mãe em lojas de departamento. Sim, é isso. Uso porque tenho. Quando algum parente perguntava pra minha mãe o que me dar de presente, logo ela dizia pra me dar uma camiseta, se perguntassem a cor, ela dizia verde. Simples assim. Meu armário foi composto dessa forma. Foi ficando verde aos poucos. E isso abala o psicológico.

Acontece que eu fui ficando velho e o verde não saia de mim. No espelho a melhor roupa sempre é a verde. Na loja o melhor tênis sempre é o verde. O verde da verdade, segundo Raul. O verde da esperança, talvez. Não sei. Gosto muito de um livro chamado “O verde violentou o muro”, de Ignácio Loyola Brandão. Simpatizo um pouco com o PV. Gosto do cheiro do mato. Mas não como salada não. Gosto de verde, não de verduras. O verde é uma cor natural, uma cor humana. Sei lá por que gosto de verde. É verde porque não é amarelo, oras. Tem que ter explicação pra tudo, poxa?



sexta-feira, 13 de agosto de 2010

11 de setembro

Era 11 de setembro. Mas não era 2001, quando o mundo ficou boquiaberto com a fragilidade dos fortes. Era 2006. Nesse dia o mundo não se espantou com nada, só eu me espantei comigo. Era uma noite quente e seca em Araraquara, como quase todas as noites daquela cidade são. Eu desci do ônibus no terminal central, já sentindo meu coração na boca. O barulho de motor de dentro do terminal se confundia com as batidas do meu coração. Eu estava adiantado, não precisava de pressa. A aula começava só às sete da noite e o relógio digital gigantesco da parada de ônibus indicava 18:30. Não precisava, mas nunca tive tanta pressa. Nunca senti um calor tão intenso como naquela noite. Passei noites quase vulcânicas naquele lugar, mas nenhuma me fazia suar tanto como aquela. Eu carregava a apostila na mão. A mão suada umedecia as páginas cheias de anotações, mapas e gráficos. Já nem agüentava mais olhá-los. Até hoje sei de cor cada parágrafo daquela porcaria. O tema da aula era demografia, a disciplina era geografia. E eu era um estudante de Ciências Sociais, com a barba por fazer, calça marrom e a minha melhor camisa, uma pólo vermelha que hoje está alaranjada de tão usada. Era a primeira vez na vida que eu enfrentava uma sala de aula. Pela primeira vez estava do outro lado do processo. E era 11 de setembro.


Tudo começou com um anúncio no mural da faculdade. Um cursinho popular da cidade selecionava professores de geografia. Eu nunca tinha dado aula, apesar de já vir me preparando pra isso. Nunca tive a pretensão de fazer outra coisa. Acho que nem saberia fazer. Fui até o pólo de informática e mandei um email. Pronto, estava inscrito. Precisava de dinheiro pra viajar nos finais de semana. Precisava saber se era aquilo mesmo que eu queria fazer. Na mesma semana se iniciava o processo seletivo. Recebi um email da coordenadora do cursinho e fiquei desesperado. Não havia prova escrita. A seleção se daria por uma aula-teste. Pra quem não sabe o que é isso, vou explicar. Trata-se de uma aula com um tema pré-determinado em que você fica na frente de coordenadores arrogantes que te fritam com os olhos enquanto você gagueja fingindo ter o mínimo de experiência naquilo que está fazendo. Depois eles te enchem de perguntas que você não sabe responder. Depois cochicham uns nos ouvidos dos outros. Depois você vai pra casa, decidido a tentar outra profissão. Enfim, passei nessa bagaça. Não sei como. Antes de mim vários colegas da faculdade, exímios debatedores nas aulas de Geografia, grandes oradores em assembléias estudantis, passaram pela mesma tortura e saíram de lá sorrindo. Mas eu, com minha voz trêmula e atropelada, saí da aula-teste com cara de atacante que perde pênalti e passei , eles não. Nunca vou entender os coordenadores. Dali uma semana eu descia do ônibus no terminal sentindo meu coração na boca.

Subi a rua em que se localizava o cursinho. Minha boca estava seca. É um prédio da Prefeitura com biblioteca, acesso a internet e uma sala de aula enorme, daquelas que o professor usa microfone, com espaço para umas cem pessoas. Lembro do suor na testa e das pernas que balançavam sem a mente mandar. Lembro da tentativa de me concentrar e parecer confiante em tudo o que ia falar. Ao entrar na sala vi cerca de 50 alunos. Não me lembro do rosto nem do nome de nenhum. Na verdade não via nada, estava tudo embaçado. Lembro só de uma loira de olhos claros que por alguns segundos me tirou a concentração. Lembro da minha gaguejeira e do microfone que não funcionava muito bem. Ainda hoje gaguejo muito dando aula, cometo erros de concordância e atropelo algumas palavras. Mas nada supera aquele 11 de setembro. O microfone que falhava era daqueles que prendem na cabeça, tipo da Madonna ou de atendente de telemarketing. Nas semanas seguintes fiz piadas sobre isso. Mas naquele dia falei sério, com voz de homem pra disfarçar minha meninice. Tinha deixado a barba crescer pra disfarçar meus 19 anos. Parecer mais velho sempre foi uma preocupação, preciso de credibilidade. Hoje minha preocupação é não parecer tão velho assim, também por uma questão de credibilidade. Falei durante 100 minutos, quase sem respirar. Acho que vomitei todos os conceitos de demografia que estavam milimetricamente decorados. Terminei a aula e senti dores pelo corpo, como quem leva uma surra de boxe. Caminhei de volta até o terminal pensando na aula e sentindo dor nas costas. Até que não foi lá tão ruim. Achava mesmo que ninguém tinha percebido meu amadorismo. Na aula seguinte eu já não suava e minha boca já não secava. Consegui ser menos sério e fazer piada da semana anterior. Graças àquela primeira noite, hoje minhas pernas não balançam mais ao entrar numa sala de aula e meus batimentos cardíacos permanecem estáveis. Mas devo isso àquela primeira noite. Era 11 de setembro e eu havia me tornado professor.


quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Pra que todos saibam

Acordo com a sua mão tocando a minha. Entre meus dedos. Sinto o cheiro do teu cabelo tocando suavemente meu nariz. Frio na espinha. Sensação de pertencimento, de preenchimento. Sentimento de calma, de cumplicidade. Paixão esfuziante que toma conta de um coração outrora tão arredio. Beijo seu rosto. Toco sua boca seca com as pontas dos dedos. Sinto vontade de beijá-la sem te acordar. Sinto vontade de beijá-la de todas as formas. Frio na espinha. Respiro seu ar mais uma vez, só pra senti-lo em meus pulmões. Sorrio sozinho. Fecho os olhos. E volto a dormir. Volto a dormir mais completo.

domingo, 8 de agosto de 2010

Como eu queria, pai

Pai, eu queria ir no Parque Antártica com você, como antigamente.
Queria que você me levasse na escola de manhã.
Queria que me acordasse com a sua voz séria, que me fazia pular da cama em poucos segundos.
Queria te ajudar a pintar as paredes, com aquele chapéu de jornal engraçado que você fazia pra mim.
Queria pedir uma carona até São Paulo no seu ônibus.
Queria me sentir protegido.
Queria ter disposição pra aprender a jogar tênis com você. E acordar cedo aos sábados pra te ver detonar os velhinhos na praia.
Queria te dar outra vez o orgulho de ter passado no vestibular, mesmo que seja pra Ciências Sociais.
Queria conversar mais sobre a vida e menos sobre trabalho, sabe? Poder falar dos meus amores e desamores.
Queria entender como você conseguiu ser esse homem. Aprender esse caminho de pedras.
Queria saber de onde sai tanta tolerância, esse amor incondicional por essa pequena família, pai. Essa coisa de agregar e de apoiar qualquer loucura nossa.
Queria cuidar de você como você cuidou de mim.
Queria ver você brincar com a Içara com uma baita cara de bobo.
Queria que você puxasse meu cabelo perto da orelha, como você fazia pra me castigar, quando eu estiver fazendo merda por aí. Doía, sabia? Mas era melhor que a cinta da mãe.
Queria ver o Palmeiras ser campeão com você outra vez. Mas isso anda difícil ultimamente.
Queria ter a beleza de escolher o Vô e Vó como seus pais. Acho isso lindo.
Queria tomar umas cervejas com você.
Queria te convidar outra vez pra ouvir minha banda tocar em qualquer muquifo. E sei que você iria com todo prazer, se eu ainda tivesse uma.
Queria saber me adaptar a todo ambiente como você. Saber me comportar perfeitamente bem tanto em um jantar com investidores franceses como em um churrasco com pagode na laje. Como se os dois ambientes me fossem naturais.
Queria um dia ter dois filhos que me olhassem e me vissem como um espelho.
Como eu queria, pai.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Até a próxima vez

Lembro da voz do Renato Russo nessas horas: “É tão estranho / Os bons morrem jovens / Assim parece ser / Quando me lembro de você / Que acabou indo embora / Cedo demais”. Acabei de receber um telefonema. Um ex-aluno morreu. Meningite. Não entendi muito bem. Não entendi o motivo da morte. Não sei lidar com ela. Tenho um pouco de medo, um tremor nas mãos, um nó na garganta.

O Diego foi meu aluno o ano passado. Um aluno brilhante, bastante crítico. E não é elogio ou homenagem póstuma não. Falei isso a ele mais de uma vez. Ele tinha um olhar sereno, levava a sério o que fazia. Bonito de se ver. Comentado na sala dos professores. Muito respeitado por todos os colegas. Não entendo a vida. Entendo menos ainda a morte. Não entendo a dor que provoca. Não é só a dor da perda, parece. Sei lá. Na verdade só provei desse gosto amargo uma vez na minha vida. Na morte do meu avô, há quase cinco anos. Acho que foi a primeira vez que a morte me desconcertou. Dá uma puta saudade só em falar nele. Acho que nunca vou conseguir escrever sobre isso. Queria ser mais cético, mais lúcido com essa conversa de morte. Não consigo.

Tenho um monte de alunos. Mais de duas centenas, com certeza. Não sei se já perdi algum nessas circunstâncias, acho que não. Mas minhas pernas bambearam ao telefone. Não entendi muito bem .  Tenho alunos que são mais próximos a mim, que tenho mais contato do que o Diego. Acho que foi a surpresa. Lembrei mais uma vez que não sei lidar com a morte. Na verdade, às vezes acho que nem com a vida eu sei lidar. Mas to aprendendo. Aprendo com meus alunos também, como aprendia com o Diego. Lembro dele ter me dito uma vez que minha aula seria mais interessante se eu jogasse a apostila no lixo. Adorei aquela frase. É assim que me lembro dele. Renato Russo encerrava assim: “Vai com os anjos / Vai em paz / Até a próxima vez”.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

No guichê da rodoviária

- Boa noite, Senhora. A que horas parte o próximo ônibus?

- Boa noite. Depende. Pra onde você pretende viajar?

- Viajar? Não, senhora, não vou viajar.

- Não entendi, rapaz.

- Não sou eu quem vai pegar o ônibus. Só vim mesmo comprar a passagem.

- Tá legal. Mas pra onde seria?

- O que a senhora sugere?

- Como?

- Diz ai um lugar legal. Vou confiar no sua indicação.

- Mas a passagem nem é pra você.

- E daí?

- Olha, rapaz, tem mais gente na fila. Decida-se primeiro depois volte.

- Tá bom, senhora. Vou no guichê de outra empresa. Lá alguém vai me sugerir um destino.

- Rapaz, espere.

- Pois não.

- Eu tenho uma sugestão.

- Estou ansioso. Diga.

- Tem um ônibus partindo em cinco minutos para São Thomé das Letras.

- A senhora é brilhante. Muito obrigado.

O rapaz saiu contente com a passagem nas mãos. Se afastando ouviu de longe novamente a voz rouca da senhora do guichê rodoviário.

- Rapaz! Moço! O senhor não me disse para quem é a passagem.


Ele entrou no ônibus e partiu.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

E que a vida recomece

Eu nunca tive lá grandes sonhos. Isso não significa que eu sonhe pequeno, não é isso. Meus projetos de futuro sempre foram racionalmente construídos, assim, sem grandes emoções. Sempre prezei muito pela estabilidade em vários aspectos da vida. Às vezes acho que protejo demais o que é permanente, pronto. Uma grande cagada que eu faço. Não sei. Pareço limitar as possibilidades. Talvez isso.

Uma amiga me disse um dia que troca grandes paixões pela estabilidade, pelo conforto. Sei lá. Ao mesmo tempo em que me identifiquei com esse discurso também senti um pouco de raiva dele. Não entendo a dicotomia entre grandes paixões e estabilidade. Talvez tenha a ver com a intensidade com que se vive as coisas. Não sei bem. Vivo - ou ao menos vivia - meus projetos estáveis com razoável intensidade. Atiro-me de braços abertos, quase sem noção dos riscos. Eu forjo a aventura. Mas as grandes paixões, por sua vez, essas eu sempre evitei viver. De braços abertos ou fechados. Pelo menos até aqui.

Nunca esperei nada avassalador acontecer. Nada que me tirasse muito do sério, me deixasse desconcertado. Pelo menos eu pensava que não gostava. Fiquei confuso agora, não sei mais se escrevo no pretérito ou no presente. Não esperei ou não espero? Que me deixasse ou que me deixa? Acho que quando a gente reconstrói nosso olhar sobre o mundo, a gente não distingue a diferença entre o que vive e o que viveu. Não falo só de amor. Tudo é um tremendo risco. Tudo é uma baita dúvida. Um novo paradigma que se apresenta. É coisa boa. Doce. Sadia.

Voltei a trabalhar. Lá se foram minhas férias, perdidas em uma madrugada fria de Santos ou em uma curva de estradinha mineira. Menos tempo livre para o blogue e, portanto, para mim. Deixo esse segundo semestre mais a vontade, sem grandes planos, grandes sonhos, à deriva. Deixo esse restinho de ano para as grandes emoções, as incalculáveis, as imprevistas. A dor que pode ser grande e, por incrível que pareça, o amor que pode ser suave, destruidor, mas ainda assim, suave. E que a vida recomece. Que finalmente recomece.

domingo, 25 de julho de 2010

A Lua de Minas Gerais

Eu fui rodar em Minas Gerais essa semana. Coisa de quem procura encontrar um destino pra vida, ou só procura farra mesmo. Ainda não sei o que estava procurando, mas encontrei. É interessante notar que somos diferentes longe de casa, somos uma pessoa em cada lugar. É como se recebêssemos influência do meio, como se o espaço interferisse na constituição da personalidade, ainda que de forma passageira. Estou viajando, eu sei.

Eu vi o pôr-do-sol mais bonito, depois falo dele. O que mexeu comigo mesmo foi ver a Lua de uma forma nova. Aliás, a Lua que fascina tanta gente por aí, pra mim nunca significou lá grande coisa. Sempre gostei mais das estrelas que dela, as estrelas brilham por si só, não precisam de ninguém. Senti isso especialmente depois de aprender na escola sobre a visita do homem a Lua. Ora, como não se encontrou nada por lá? Como não se pretende voltar? E aquele desenho? Cadê o coelho? Cadê São Jorge? Vocês acabaram com a magia, malditos americanos. Astro de merda, pensava eu. 

Pensava eu até observar a Lua sobre uma pedra bem alta, em uma cidade mais alta ainda. Uma cidade linda de tão calma. A Lua estava quase cheia e a cidade quase vazia. O silêncio ajudou um pouco. A escuridão da noite se transformara em um luar prateado. As coisas estavam prateadas, a igreja, as ladeiras de pedra, as pessoas caminhando. Lembrei que não precisava, pelo menos ali, pensar na vida que vivo aqui. Deitei sobre a pedra. Senti o frio sob minha cabeça e minhas costas. A pedra na verdade era uma pequena  e úmida gruta. Pensei na capacidade da Lua de iluminar a noite de forma tão delicada. A Lua não é tão atroz como o Sol em dia de verão. Ela é sutil, ilumina só o necessário. Embeleza a noite apenas quando está a fim, sem a obrigação de ser fundamental a alguém, aquecer e dar vida a tudo. A Lua não tem compromisso, é solta. Acho que foi por isso que, por um minuto na pedra, eu amei tanto a Lua. Ela me mostrou como vivia assim, tão leve e sozinha. Ultimamente tenho gostado mais de quem vive a leveza, o descompromisso. Eu não quero a Lua pra mim, quero que ela apareça quando tiver vontade. Ela é bem livre, só se mostra quando quer, só é bonita quando quer, só ilumina quando quer, só me inspira quando quer. Tudo isso sem fazer força.

Ainda deitado sobre a pedra gelada, me lembrei de uma música que minha mãe cantava pra mim quando era criança. Música linda. Ela cantava quando estávamos no carro, viajando a noite. Mas isso foi antes da minha desilusão na aula de Ciências. Eu dizia: “Olha que lua bonita, mãe!” E ela cantava comigo: Lua bonita se tu não fosses casada / Preparava uma escada / Pra ir no céu te beijar / Se tu colasse teu frio ao meu calor / Eu pediria ao nosso senhor / Para contigo casar / Lua bonita me traz aborrecimento / Ver São Jorge num jumento / Pisando no teu clarão / Por que casaste com um homem tão sisudo / Que come dorme faz tudo / Dentro do teu coração.

Cantei deitado mesmo. Quem estava por perto ouvia com certa atenção. Não sei se gostaram, canto mal pra caramba. Mas penso que acharam apropriado. A Lua estava realmente bonita, iluminando a noite. Testemunhava o sentimento mais bonito sobre aquela gruta úmida. A Lua convencia a todos ali de que vale a pena. O que vale a pena? Isso ela não disse. Ela é assim – acho que como eu – conta tudo pela metade.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Solidão, a casa é sua

Tom Zé é gênio. Todos nós somos minhocas perto dele. Não conheço ninguém que aproxima loucura e genialidade como esse baiano. Acho que ouvi Tom Zé pela primeira vez apresentado pelo meu irmão, há (talvez) dez anos atrás. Se não me engano o cd era Com Defeito de Fabricação. Sensacional. Depois o vi na televisão, com toda aquela simplicidade quase estúpida, quase insana. Queimava uma nota de um dólar e despedaçava sua roupa enquanto cantava O Gene. Tom Zé é simples e sofisticado, louco e lúcido, às vezes mais lúcido que qualquer um aqui.

Vi uma entrevista sua em que comentava o fato de Sean Lennon, filho de John & Yoko, ser seu fã. Ele disse que uma vez, ao conhecer o DJ filho do beatle fora perguntado: “O que você ouve? O que te inspirou a fazer uma música dessas?”. Tom Zé respondeu com simplicidade e doçura: “Seu pai, idiota”. Tenho seu livro publicado pela PubliFolha, Tropicalista Lenta Luta, que é uma compilação de artigos e letras. Também assisti seu documentário, Fabricando Tom Zé. Recomendo ambos. Como todo nordestino, seu sorriso é fácil, tão fácil quanto sua ira. Depois de ver o filme, me senti quase íntimo.

Tom Zé fala em “estética do plágio”. Depois de milhares de anos de história, a verdade é que ninguém mais consegue ser único. Não se inventa mais nada. Tudo é cópia. É plágio. É uma repetição do avesso, travestida de inovação brilhante. E não falo só de arte não. Ninguém está sozinho, ainda que esteja só. E aí, andando de carro pela madrugada de segunda-feira ouço Tom Zé no meu ouvido. “Na vida quem perde o telhado / Em troca recebe as estrelas / Pra rimar até se afogar / E de soluço em soluço esperar / O sol que sobe na cama / E acende o lençol / Só lhe chamando / Solicitando”. Dei risada sozinho, quase emocionado. Deitei e dormi.

Estar sozinho é doce também. “Que poeira leve”, diria Tom Zé. É assim que me sinto hoje. Leve e só. Docemente. A solidão veio acalmar a minha amargura. “O telefone chamou, foi engano...”. Eu bem gosto assim. Solidão, olhe, pode entrar que a casa é sua.


sábado, 17 de julho de 2010

Capricha na limpeza, Bruno

Meu quarto é uma baita bagunça. Tenho que ouvir minha mãe reclamar diariamente dele. “Quando você vai limpar essas prateleiras de livro?” ou “Quando você vai arrumar essa bagunça da mesa?”. Sempre marco uma data, mas ela nunca chega.  Minha mãe sabe disso, mas mantém a esperança. Aí você pensa: “Um cara velho assim levando bronca da mãe pra arrumar o quarto”. É sim, e daí, meu caro?

Morei sozinho durante quatro anos. Só quem passou por isso sabe da dor e da delícia de viver assim. Fui morar em Araraquara aos 18 anos sem saber fritar um ovo, sem saber lavar uma privada. Confesso que serviço doméstico é meu fraco. No primeiro ano de faculdade dividia a casa com um amigo que era excelente cozinheiro, o Bento. Rolava até uma feijoada às vezes. Nossos amigos riam da gente porque cada um era responsável por cozinhar um dia. Na vez dele tinha sempre feijão, uma carne suculenta, até strogonoff o safado fazia. Já na minha vez ele dava graças a deus quando rolava um macarrão com salsicha. Quando estava duro o prato era ovo com farinha, uma iguaria nordestina que aprendi com minha ex-sogra. Provocava gases. Aos poucos o Bento foi deixando de almoçar em casa nos dias em que eu cozinhava. Não entendo o motivo.

Quando o assunto era limpeza não havia tanta discrepância entre nós dois. Nenhum de nós gostava muito de faxina. Na verdade só reconhecíamos a necessidade dela depois de matar a terceira barata da semana. È nojento mesmo, pode falar. Quando o negócio beirava o insuportável, resolvemos contratar uma faxineira, a Dona Rita. Como odeio aquela mulher. Ela fazia faxina uma vez por semana, se eu não me engano. Deixava tudo lindo e cheiroso. Mas a desgraçada chegava às 10 da manhã e nos acordava com seus baldes e sua cara de poucos amigos. Dona Rita é do tipo de mulher que não mede as palavras, não tinha medo de pôr em risco seu bico de faxineira da kitchenet azul – cada uma tinha uma cor, uma espécie de personalidade - naquele bucólico bairro de estudantes preguiçosos. Ela não entendia que o pessoal economizava o dinheiro da balada pra pagar pelos seus serviços. Era um grande esforço que se fazia. Falava na nossa cara que a gente era porco, imagina só. Brigava se a gente a recebesse de cueca. Era quase nossa mãe baixando ali, em território inimigo. Que raiva que dava! Dona Rita só conquistou a galera quando levou sua sobrinha de 17 anos pra ajudá-la no serviço. Ainda hoje ela deve estar lá tocando o terror nos calouros de Araraquara.

Voltar a morar com meus pais não foi lá tão traumatizante. Se bem que ir é mais fácil que voltar. Sai cedo de casa e acabei voltando cedo também. Agora tenho que seguir os padrões. Há um ano e meio estou em processo de adaptação. Juro que semana que vem limpo as prateleiras e até minhas férias acabarem reorganizo meus papéis de cima da mesa. Ah, e prometo sempre pendurar minha toalha no varal também. Tenho saudades daqueles anos imundos.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Férias de inverno

O inverno é a melhor estação do ano. Desde criança, gosto muito mais das férias de julho que as de verão. Acho que nem sei explicar o motivo. Lembro só de algumas passagens da minha infância. Sou um cara de memória curta, mas esse blogue é um exercício intelectual e serve exatamente pra que eu me esforce em lembrar.

Nos meses de junho, ainda na escola, notava a proximidade das férias pelo frio que fazia de manhã. Era difícil levantar. Sair debaixo do edredom numa manhã fria é um desafio homérico pra mim. Eu gosto de dormir de manhã. Lembro da minha professora da 3ª série anunciar durante uma manhã gelada do Ipiranga: “Ainda bem que as férias estão chegando, está muito frio, é muito difícil levantar cedo nessa época do ano”. Acho que nessa frase a danada me conquistou. Hoje sei que um professor conquista um aluno em pequenas frases como essa. Se bem que nem me lembro do nome dela. Lembro bem do seu rosto e da raiva que senti quando me mandou pra diretoria só porque eu puxava as alças dos sutiãs das meninas para trás e soltava como se fosse um elástico.  O troço estralava nas costas da pobrezinha e eu morria de rir. Ficava puto. Quem usa sutiã na 3ª série? Nem projeto de seios elas tinham ainda. Fui pra diretoria com meu amigo Thiago, que praticava essa barbaridade comigo, não lembro o que aconteceu depois.

Chegavam as férias e eu tinha duas opções. Dificilmente ficava em São Paulo. Minhas opções eram Campos do Jordão, onde temos uma casa, e São Vicente, na casa dos meus avós. Gostava mais da segunda opção, mas no inverno a família sempre escolhia a primeira. Na verdade eu não tinha duas opções, iria pra onde me levassem, oras. Confesso que gostava mais da casa da minha avó, porque lá tinha meus amigos de rua, meu timinho de futebol e a menina que eu era apaixonado. Em Campos do Jordão eu era mais sozinho. Normalmente meu irmão levava um amigo dele e eu tentava acompanhá-los. Na verdade, minha infância se baseia em tentar sempre acompanhar meu irmão. E até certo ponto me orgulho disso.

Nas férias de inverno minhas atividades eram um pouco mais limitadas que nas de verão. Lembro que uma das coisas que eu mais gostava era de desbravar o mato da região. Ia com meu primo ou com meu irmão até um lugar onde havia um resquício de mata, aquela vegetação de araucária, homogênea e repetitiva, ou pra catar pinhão, iguaria que aprecio, ou pelo simples prazer de se embrenhar no mato. Eu era quase um bandeirante em busca do Eldorado. Eu era um capitão do mato caçando um escravo fujão. Eu era o próprio Tarzan, o próprio Mogli. É o mais perto que eu consegui chegar de tudo isso.

Antes de construirmos a casa, ficávamos em um igloo (iglu, em português), mas eu detestava aquela casinha fria de gesso. Gostava mesmo do restaurante que tinha lá. Serviam um frango à passarinho que, de lembrar, me deu água na boca. Gozado a gente lembrar dos lugares e sentir o gosto da comida de lá. Adorava também a mesa de sinuca. Nunca fui bom nesse diabo desse jogo, mas me divertia. Meu pai se achava o rei da sinuca e ficava horas ensinando a gente a jogar. Eu sempre perdia e meu irmão sempre tirava um sarro. Ficava puto. Nunca gostei de perder, mas aos 23 anos já me acostumei com a idéia.

Aí cresci um pouco com o passar do tempo. Campos do Jordão já tinha outro sabor na minha adolescência. Lembro da minha primeira madrugada sem meus pais na rua. Foi lá. Eu, meu irmão e um amigo andando pela cidade de skate (na maioria do tempo, de skate debaixo do braço). Eles, pela primeira vez, me levaram junto. Acho que assim começou minha adolescência. Sei lá, não sei se é normal escolher um marco pra uma mudança de fase na vida, como se fosse o chefão de uma fase de videogame. Se for normal, aquela madrugada foi o chefão. Na manhã seguinte acordei adolescente. Estava pronto pra me tornar mais um babaca com o rosto recheado de acne.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Intérprete

Eu gosto de falar de música. Eu já até tentei ser músico, sabia? Não deu certo e acho que não poderia mesmo dar. Levei a sério demais a coisa. Estudava música, mas nem sempre a sentia. Tive algumas bandas, toquei teclado, banquei o compositor, o sentimental. Não era pra dar certo. Acho que não fazia pela música, fazia por mim. Talvez fosse uma mistura de diversão adolescente com coisa de ego, sei lá. Troquei o palco pela sala de aula. Acho que era o que devia ter feito mesmo.

Assistindo ao programa Zoombido, aquele do Paulinho Moska no Canal Brasil, ouvi a Maria Gadú definindo música como “simbiose dos sentidos”. Achei aquilo tão legal. Lembrei de uma amiga que “sofre” de sinestesia. Sente o cheiro, a imagem e até a textura da música. Coisa louca. Minha nova diversão é escolher uma música no som do carro e perguntar a ela o que sente. Ouvi coisas incríveis. Consegui até entender melhor algumas músicas que pra mim tinham um sentido um pouco esparso. Ela sempre me oferece uma visão diferente de uma música que eu gosto. Cutuca minha imaginação. Se eu tivesse esses sentidos tão aflorados talvez tivesse conseguido ser músico de verdade. Ou pelo menos compreendido melhor aquilo que tentava fazer, sei lá.

Música é interpretação? Claro que é. Mas o que não é interpretação, pô? Interpretamos música, interpretamos as nossas relações pessoais, interpretamos a vida. Existe até uma teoria sociológica que aponta o indivíduo como intérprete de seu papel social. Coisa da sociologia norte-americana, não gosto muito, mas faz um sentido danado. Interpretar é fornecer significado, e isso cada um faz de um jeito. Eu interpreto uma música, um olhar, uma frase da maneira como eu quiser. Não existe uma verdade. Somos intérpretes da vida, ou não somos? A gente interpreta a vida, mas também interpreta para a vida. Modéstia a parte, tenho feito o segundo com exímia competência.

Droga. Jurei que esse texto ia falar de música. Acho que a música foi o pretexto pra falar de mim. Assim é mais fácil, não preciso falar com todas as letras o que penso de mim mesmo. Eu gosto mesmo é de deixar tudo aberto, livre para os intérpretes que gastaram seu tempo lendo. Ficamos assim. Interprete isso como quiser.


sábado, 10 de julho de 2010

A cor de São Paulo

Gosto da cor de São Paulo, especialmente a noite. Acho que gosto das luzes. Não falo do cinza, porque não a vejo só cinza. Nasci lá, em um hospital na Vila Mariana, que não me lembro o nome. Morei no Ipiranga até os 11 anos de idade, onde, portanto, vivi minha infância. Lembro de tudo pela janela do carro. Infância paulistana é assim, especialmente em famílias como a minha. Conheço cada cantinho do playground, da quadra e da piscina do edifício em que morei, mas a cidade mesmo só conheço da janela do carro.

O ar de São Paulo é o ar do meu apartamento na Rua Saioá, uma atravessa da Rua Vergueiro, perto de onde hoje é a estação Imigrantes. Aos finais de semana vinhamos a São Vicente, à casa dos meus avós. Os lugares que freqüentava em São Paulo, além do meu prédio e da escola, se restringiam a alguns shoppings e outros lugares que, no entanto, marcaram minha infância. Um deles é a Rua 25 de Março, a rua que fazia minha mãe sorrir de uma forma única. Quando era Natal, ou quando sobrava um dinheirinho, íamos almoçar no Mercado Municipal e depois fazer compras na 25. Às vezes íamos de ônibus, porque é difícil estacionar lá, o que pra mim era uma grande aventura.

Eventualmente não descíamos a Serra em algum fim de semana. Especialmente quando era inverno. Aos sábados ou domingos íamos a Praça de República, onde aprendi a gostar de Acarajé e de Tempurá. Era legal. Uma passada na Galeria do Rock e um almoço na praça. Havia uma feira de artesanato pra divertir minha mãe, cerveja pra divertir meu pai e música pra divertir a mim e meu irmão. Um dia vi um cara sendo esfaqueado lá. Eu tinha 9 anos, nunca mais esqueci.

Gostava de ir ao Parque do Ibirapuera também, tínhamos um cachorro preto e branco. Eu andava de patins e corria atrás dele. Às vezes alugava uma bicicleta e fugia da minha mãe. O Ibirapuera pra mim era mais legal que praia. Pena que não vendia raspadinha de groselha. O Museu do Ipiranga também era um lugar incrível pra mim. Me impressionava pela exuberância, mas fazia parte da minha paisagem cotidiana. Morava e estudava bem perto dele. Lá dei meu primeiro beijo.

Hoje ando por São Paulo fascinado e irritado. Mais fascinado que irritado. Em finais de semana ou feriados, como ontem, não ligo de me perder ou de atravessar a pé toda a Avenida Paulista. Gosto do vento cortando o rosto, silencioso. Acho legal ser um paulistano que tenta descobrir São Paulo, um turista. Tenho um misto de inveja e pena do paulistano. Um dia volto pra lá. Mas só um dia.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Feliz Ano Velho

A gente às vezes comete algumas cagadas na vida. Minha vida é cheia delas, assim como a sua. Em Feliz Ano Velho, Marcelo Rubens Paiva conta sua história,  sua grande cagada. Como alguém em estado de loucura (não me lembro se maconha ou álcool, ou se os dois) pula em um rio sem saber a profundidade? E pula fazendo a pose o Tio Patinhas? A morte chega tão perto, assim, num salto babaca.Que fragilidade!

O livro é sensacional. É mais um daqueles que eu devia ter lido aos 15 anos, mas não li, talvez porque estava ocupado demais em ler o que os meninos da minha idade não liam. Ou estava no icq mesmo. Bom, então li aos 23. Aos 23 anos de idade é legal ler uma  autobiografia dessas. Ele tinha minha idade quando ficou paraplégico. Como o Marcelo conseguia ser tão legal, tão jovem, tão confiante ali na cama de hosítal, sem saber se voltaria (e não voltou) a andar um dia?Parece que ele viveu intensamente tudo o que tinha pra viver antes do acidente (ou da cagada). Penso se eu vivi também.

Não é um texto pra se pensar na morte. O livro me questiona o tempo tudo. Me coloca na parede diante da história de vida do autor. É sincero demais pra minha cabeça. Às vezes chega a incomodar. Mas é tão doce de ler que invejo a simplicidade de como é escrito. Observe:
De que vale a eternidade? Um orgasmo dura poucos segundos. A vida dura poucos segundos. A história se fará com ou sem a sua presença. A morte é apenas um grande sonho sem despertador para interromper. Não sentirá dor, medo, solidão. Não sentirá nada, o que é ótimo. O sol continuará nascendo. A terra se fertilizará com o seu corpo. Suas fotografias amarelarão nos álbuns de família. (PAIVA, Marcelo R. , p. 64, 1982).
Eu queria escrever como ele. Ou melhor, queria saber viver como ele. 
  

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Sobre o título do blogue

“Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”. Assim escreveu Chico Buarque em 1968. Não, o título deste blogue não é criação minha. É uma citação de um dos artistas mais completos desse país. Aliás, Chico Buarque tem uma coisa única, pelo menos no meu ponto de vista, ele nos torna íntimos de suas músicas. A gente ouve e ela passa a parecer nossa, e fica imaginando em qual momento da nossa vida aquela música se encaixa melhor. É engraçado pensar que ouvia músicas que achava linda, mas que não tinham a ver com o que vivia, não se adaptavam àquele momento. Um tempo depois, olha só, estou vivendo aquela música. Um barato. 

Ouvi Chico pela primeira com uns 10 anos de idade. Pelo menos essa é a primeira lembrança que eu tenho. Meus pais tinham uma coleção de quatro CDs, uma coletânea: O Malandro, O Trovador, O Romântico e O Político. É sensacional. Claro que não ouvíamos com tanta freqüência. Eu e meu irmão éramos adolescentes e ouvíamos rock a valer. Mas algumas músicas daquelas já me chamavam a atenção. Já no ensino médio, meu interesse por política me levou até a estante de CDs. Sentia a sensação de estar em 1968. Sentia inveja daquela geração. Cálice, Acorda Amor, Deus lhe pague, Apesar de você. Aquilo me encantou. Mergulhei no Chico e quis ouvir todo resto da coleção. Fui deixando o rock meio de lado, e nem era para parecer mais inteligente, juro.

A frase citada é de um artigo publicado em 1968 no jornal Última Hora. Nele Chico faz um questionamento da real necessidade de inovar a MPB, como se a única forma de se criar uma coisa nova fosse romper completamente com a velha. Chico ainda fazia samba, num momento em que a Tropicália e a guitarra elétrica abalavam as estruturas da cultura brasileira. Por isso a frase. Segundo Chico, “é certo que se deve romper com as estruturas. Mas a música brasileira, ao contrário de outras artes, já traz dentro de si os elementos de renovação” (1968). Assim, Chico Buarque poderia ser lúcido sem precisar ser velho. Não precisava de uma guitarra pra ser único.


Ora, não é esse o sentimento da minha geração? É preciso ser louco pra ser brilhante? Minha lucidez não é velha, estou convicto. Minha loucura talvez seja. A primeira parte da citação sempre me pareceu óbvia. Ao longo da história, muitos gênios foram, por engano, chamados de loucos. Mas o erro hoje se comete às avessas: muitos loucos são chamados de gênio. Prezo pela minha lucidez, portanto. Nem toda lucidez é velha, meus amigos.


"Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha".

terça-feira, 6 de julho de 2010

Por que eu criei esse blogue?

Eu gosto de ler mais do que de escrever. Uso a escrita pra bancar o inteligente, nada mais. Minha oratória é um lixo: invariavelmente gaguejo e cuspo nas pessoas, mesmo as mais íntimas. A minha dicção é péssima, às vezes não abro a boca pra falar. Como me tornei professor? Às vezes fico na duvida se os alunos entendem o que falo, às vezes tenho certeza de que não entendem. Quando estou de mau humor – o que pode ser tão constante quanto ocasional – falo pra dentro, como se quisesse esconder do mundo a minha voz, pura pirraça. Esse blogue vai me ajudar a parecer inteligente, bem articulado. Tipo: “Amigo novo, não fale comigo, leia meu blogue”.

Na verdade, não é só isso. Meu irmão queria que eu fizesse um. Acho que era pra me comunicar com meus alunos, criar uma ferramenta interessante de trabalho pedagógico. Ele me convenceu. Prometo fazê-lo, mas antes preciso de um blogue egoísta, que fale de mim, ou pelo menos que pareça falar de mim. Os alunos podem esperar, aliás, eles não estão esperando por nada mesmo. Esse blogue é uma influência do meu irmão. Tipo: “Bruno, se espelhe no seu irmão que serás um cara legal”.

Mas também não é só. Estou de férias, o que parece ótimo, mas me transforma num vegetal insônico. Blogue é passatempo também. Tipo: “Vou falar umas bobagens pra três ou quatro amigos inúteis, só pra me distrair”.

Por fim, tem outro motivo. Esse blogue tem a ver com a (re)construção de uma identidade. Quem me conhece mais ou menos, como quase todos que me conhecem, sabe que não falo de mim. Não é por timidez, é porque não sei falar mesmo. Então vou tentar escrever. Se não der certo, tento um psiquiatra. Recebi boas indicações de um amigo, que diz que a sua relação com o terapeuta é a mais duradoura de todas as suas relações pessoais. Achei engraçado. Mas por enquanto vou tentar um blogue mesmo. Tipo: “Dr. Blogue – Terapeuta do autoconhecimento”.

Chega. Me disseram que um blogue deve ter textos curtos.