sábado, 21 de agosto de 2010

O Verde

Minha namorada implica com meu guarda-roupa. Só pode ser amor. Excesso de verde, diz ela. Verde claro, verde escuro, verde limão, verde musgo, várias tonalidades de verde. Poucos azuis, pretos, vermelhos, cor de rosa. É fato, uso muita roupa verde. Não sou multicolorido como ela. E não é de hoje, viu? Aliás, faz muito tempo. Não sei bem o motivo, mas vou tentar encontrar.

Tudo começou com um tênis verde. Um All Star velho que não saia do meu pé, lá por volta do ensino fundamental. Era um tênis surrado, mas muito querido. Acho engraçado como as pessoas estabelecem relação afetiva com as suas vestes. Sei que eu não sou o único. Mas também foi só aquele. Eu gostava muito dele, era confortável, sujo, vivia meio desamarrado, mas era muito feliz no meu pé. Tenho certeza de que ele era. Minha mãe o odiava. Insistia pra que eu fosse com ela escolher um novo na loja. Insistia pra eu calçar outro mais limpinho e novinho, mas eu era resistente, bravamente resistente. Minha mãe tinha dessas coisas de botar o filho pra andar arrumadinho. Hoje ela já perdeu as esperanças, mas reconheço seu esforço de tentar criar dois filhos bem vestidos. Um dia eu cheguei em casa e vi uma caixa de All Star sobre minha cama. Deu um aperto no coração. O que eu mais temia havia acontecido, minha mãe jogara fora meu velho tênis verde. Abri a caixa e vi um igual. Aliás, exatamente igual. Era verde, mas um verde forte, sem aquela cara de desbotado do velhinho. Era um tênis que tentava ser simpático, mas não conseguia substituir seu antecessor. Enfim, todos os meus amigos repararam que meu tênis novo era igual ao velho. Quando o novo finalmente ficou velho, comecei a calçá-lo com mais satisfação. Mas antes que eu me apegasse ao novo velho tênis ele logo ficou maloqueiro demais aos olhos da minha mãe e foi substituído por um exatamente igual. Fui motivo de chacota. Alguns amigos me chamavam de “pé verde” ou coisa parecida. Aí que começou o negócio do verde.

Depois do tênis veio o lance das camisetas. Até alguns alunos já repararam e me perguntaram o porquê de tanto verde. Nem sei explicar. Alguns atribuem ao Palmeiras, mas na minha intimidade sei que não é isso. Também não tem nada a ver com a natureza. Nunca tive muito de eco-chato. Assumi a postura de um professor de geografia que não insiste muito na questão ambiental. Eu é que não vou dizer pro meu aluno fazer xixi no banho pra economizar a água da descarga. Eu vivo por aí queimando gasolina. Nunca perdi uma noite de sono por conta da perda da biodiversidade do planeta. Estou sendo sincero, nem eu, nem você perdemos. Sem falso moralismo ambiental, já joguei muito papel no chão, tomo banho demorado, mas sei muito bem as implicações do aquecimento global. Uso camiseta verde porque meu armário está cheio delas, ué. Só por isso. Não gosto muito de comprar roupa. Meu armário é constituído basicamente por presentes da família ou de passeios da minha mãe em lojas de departamento. Sim, é isso. Uso porque tenho. Quando algum parente perguntava pra minha mãe o que me dar de presente, logo ela dizia pra me dar uma camiseta, se perguntassem a cor, ela dizia verde. Simples assim. Meu armário foi composto dessa forma. Foi ficando verde aos poucos. E isso abala o psicológico.

Acontece que eu fui ficando velho e o verde não saia de mim. No espelho a melhor roupa sempre é a verde. Na loja o melhor tênis sempre é o verde. O verde da verdade, segundo Raul. O verde da esperança, talvez. Não sei. Gosto muito de um livro chamado “O verde violentou o muro”, de Ignácio Loyola Brandão. Simpatizo um pouco com o PV. Gosto do cheiro do mato. Mas não como salada não. Gosto de verde, não de verduras. O verde é uma cor natural, uma cor humana. Sei lá por que gosto de verde. É verde porque não é amarelo, oras. Tem que ter explicação pra tudo, poxa?



sexta-feira, 13 de agosto de 2010

11 de setembro

Era 11 de setembro. Mas não era 2001, quando o mundo ficou boquiaberto com a fragilidade dos fortes. Era 2006. Nesse dia o mundo não se espantou com nada, só eu me espantei comigo. Era uma noite quente e seca em Araraquara, como quase todas as noites daquela cidade são. Eu desci do ônibus no terminal central, já sentindo meu coração na boca. O barulho de motor de dentro do terminal se confundia com as batidas do meu coração. Eu estava adiantado, não precisava de pressa. A aula começava só às sete da noite e o relógio digital gigantesco da parada de ônibus indicava 18:30. Não precisava, mas nunca tive tanta pressa. Nunca senti um calor tão intenso como naquela noite. Passei noites quase vulcânicas naquele lugar, mas nenhuma me fazia suar tanto como aquela. Eu carregava a apostila na mão. A mão suada umedecia as páginas cheias de anotações, mapas e gráficos. Já nem agüentava mais olhá-los. Até hoje sei de cor cada parágrafo daquela porcaria. O tema da aula era demografia, a disciplina era geografia. E eu era um estudante de Ciências Sociais, com a barba por fazer, calça marrom e a minha melhor camisa, uma pólo vermelha que hoje está alaranjada de tão usada. Era a primeira vez na vida que eu enfrentava uma sala de aula. Pela primeira vez estava do outro lado do processo. E era 11 de setembro.


Tudo começou com um anúncio no mural da faculdade. Um cursinho popular da cidade selecionava professores de geografia. Eu nunca tinha dado aula, apesar de já vir me preparando pra isso. Nunca tive a pretensão de fazer outra coisa. Acho que nem saberia fazer. Fui até o pólo de informática e mandei um email. Pronto, estava inscrito. Precisava de dinheiro pra viajar nos finais de semana. Precisava saber se era aquilo mesmo que eu queria fazer. Na mesma semana se iniciava o processo seletivo. Recebi um email da coordenadora do cursinho e fiquei desesperado. Não havia prova escrita. A seleção se daria por uma aula-teste. Pra quem não sabe o que é isso, vou explicar. Trata-se de uma aula com um tema pré-determinado em que você fica na frente de coordenadores arrogantes que te fritam com os olhos enquanto você gagueja fingindo ter o mínimo de experiência naquilo que está fazendo. Depois eles te enchem de perguntas que você não sabe responder. Depois cochicham uns nos ouvidos dos outros. Depois você vai pra casa, decidido a tentar outra profissão. Enfim, passei nessa bagaça. Não sei como. Antes de mim vários colegas da faculdade, exímios debatedores nas aulas de Geografia, grandes oradores em assembléias estudantis, passaram pela mesma tortura e saíram de lá sorrindo. Mas eu, com minha voz trêmula e atropelada, saí da aula-teste com cara de atacante que perde pênalti e passei , eles não. Nunca vou entender os coordenadores. Dali uma semana eu descia do ônibus no terminal sentindo meu coração na boca.

Subi a rua em que se localizava o cursinho. Minha boca estava seca. É um prédio da Prefeitura com biblioteca, acesso a internet e uma sala de aula enorme, daquelas que o professor usa microfone, com espaço para umas cem pessoas. Lembro do suor na testa e das pernas que balançavam sem a mente mandar. Lembro da tentativa de me concentrar e parecer confiante em tudo o que ia falar. Ao entrar na sala vi cerca de 50 alunos. Não me lembro do rosto nem do nome de nenhum. Na verdade não via nada, estava tudo embaçado. Lembro só de uma loira de olhos claros que por alguns segundos me tirou a concentração. Lembro da minha gaguejeira e do microfone que não funcionava muito bem. Ainda hoje gaguejo muito dando aula, cometo erros de concordância e atropelo algumas palavras. Mas nada supera aquele 11 de setembro. O microfone que falhava era daqueles que prendem na cabeça, tipo da Madonna ou de atendente de telemarketing. Nas semanas seguintes fiz piadas sobre isso. Mas naquele dia falei sério, com voz de homem pra disfarçar minha meninice. Tinha deixado a barba crescer pra disfarçar meus 19 anos. Parecer mais velho sempre foi uma preocupação, preciso de credibilidade. Hoje minha preocupação é não parecer tão velho assim, também por uma questão de credibilidade. Falei durante 100 minutos, quase sem respirar. Acho que vomitei todos os conceitos de demografia que estavam milimetricamente decorados. Terminei a aula e senti dores pelo corpo, como quem leva uma surra de boxe. Caminhei de volta até o terminal pensando na aula e sentindo dor nas costas. Até que não foi lá tão ruim. Achava mesmo que ninguém tinha percebido meu amadorismo. Na aula seguinte eu já não suava e minha boca já não secava. Consegui ser menos sério e fazer piada da semana anterior. Graças àquela primeira noite, hoje minhas pernas não balançam mais ao entrar numa sala de aula e meus batimentos cardíacos permanecem estáveis. Mas devo isso àquela primeira noite. Era 11 de setembro e eu havia me tornado professor.


quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Pra que todos saibam

Acordo com a sua mão tocando a minha. Entre meus dedos. Sinto o cheiro do teu cabelo tocando suavemente meu nariz. Frio na espinha. Sensação de pertencimento, de preenchimento. Sentimento de calma, de cumplicidade. Paixão esfuziante que toma conta de um coração outrora tão arredio. Beijo seu rosto. Toco sua boca seca com as pontas dos dedos. Sinto vontade de beijá-la sem te acordar. Sinto vontade de beijá-la de todas as formas. Frio na espinha. Respiro seu ar mais uma vez, só pra senti-lo em meus pulmões. Sorrio sozinho. Fecho os olhos. E volto a dormir. Volto a dormir mais completo.

domingo, 8 de agosto de 2010

Como eu queria, pai

Pai, eu queria ir no Parque Antártica com você, como antigamente.
Queria que você me levasse na escola de manhã.
Queria que me acordasse com a sua voz séria, que me fazia pular da cama em poucos segundos.
Queria te ajudar a pintar as paredes, com aquele chapéu de jornal engraçado que você fazia pra mim.
Queria pedir uma carona até São Paulo no seu ônibus.
Queria me sentir protegido.
Queria ter disposição pra aprender a jogar tênis com você. E acordar cedo aos sábados pra te ver detonar os velhinhos na praia.
Queria te dar outra vez o orgulho de ter passado no vestibular, mesmo que seja pra Ciências Sociais.
Queria conversar mais sobre a vida e menos sobre trabalho, sabe? Poder falar dos meus amores e desamores.
Queria entender como você conseguiu ser esse homem. Aprender esse caminho de pedras.
Queria saber de onde sai tanta tolerância, esse amor incondicional por essa pequena família, pai. Essa coisa de agregar e de apoiar qualquer loucura nossa.
Queria cuidar de você como você cuidou de mim.
Queria ver você brincar com a Içara com uma baita cara de bobo.
Queria que você puxasse meu cabelo perto da orelha, como você fazia pra me castigar, quando eu estiver fazendo merda por aí. Doía, sabia? Mas era melhor que a cinta da mãe.
Queria ver o Palmeiras ser campeão com você outra vez. Mas isso anda difícil ultimamente.
Queria ter a beleza de escolher o Vô e Vó como seus pais. Acho isso lindo.
Queria tomar umas cervejas com você.
Queria te convidar outra vez pra ouvir minha banda tocar em qualquer muquifo. E sei que você iria com todo prazer, se eu ainda tivesse uma.
Queria saber me adaptar a todo ambiente como você. Saber me comportar perfeitamente bem tanto em um jantar com investidores franceses como em um churrasco com pagode na laje. Como se os dois ambientes me fossem naturais.
Queria um dia ter dois filhos que me olhassem e me vissem como um espelho.
Como eu queria, pai.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Até a próxima vez

Lembro da voz do Renato Russo nessas horas: “É tão estranho / Os bons morrem jovens / Assim parece ser / Quando me lembro de você / Que acabou indo embora / Cedo demais”. Acabei de receber um telefonema. Um ex-aluno morreu. Meningite. Não entendi muito bem. Não entendi o motivo da morte. Não sei lidar com ela. Tenho um pouco de medo, um tremor nas mãos, um nó na garganta.

O Diego foi meu aluno o ano passado. Um aluno brilhante, bastante crítico. E não é elogio ou homenagem póstuma não. Falei isso a ele mais de uma vez. Ele tinha um olhar sereno, levava a sério o que fazia. Bonito de se ver. Comentado na sala dos professores. Muito respeitado por todos os colegas. Não entendo a vida. Entendo menos ainda a morte. Não entendo a dor que provoca. Não é só a dor da perda, parece. Sei lá. Na verdade só provei desse gosto amargo uma vez na minha vida. Na morte do meu avô, há quase cinco anos. Acho que foi a primeira vez que a morte me desconcertou. Dá uma puta saudade só em falar nele. Acho que nunca vou conseguir escrever sobre isso. Queria ser mais cético, mais lúcido com essa conversa de morte. Não consigo.

Tenho um monte de alunos. Mais de duas centenas, com certeza. Não sei se já perdi algum nessas circunstâncias, acho que não. Mas minhas pernas bambearam ao telefone. Não entendi muito bem .  Tenho alunos que são mais próximos a mim, que tenho mais contato do que o Diego. Acho que foi a surpresa. Lembrei mais uma vez que não sei lidar com a morte. Na verdade, às vezes acho que nem com a vida eu sei lidar. Mas to aprendendo. Aprendo com meus alunos também, como aprendia com o Diego. Lembro dele ter me dito uma vez que minha aula seria mais interessante se eu jogasse a apostila no lixo. Adorei aquela frase. É assim que me lembro dele. Renato Russo encerrava assim: “Vai com os anjos / Vai em paz / Até a próxima vez”.