quinta-feira, 30 de junho de 2011

Segunda-feira de cinzas

Eram quase duas horas da tarde quando estacionei o carro em frente à escola. A rua, pouco movimentada como sempre, tinha um forte cheiro de queimado. Olhei ao redor pra tentar enxergar onde estava a fogueira, de onde vinha fumaça. Nada vi. Minha aula já estava para começar. Apressei-me em fechar o carro e pegar minha mochila. Só me faltavam duas horas para finalmente ir pra casa descansar. Entrei pelo portão amarelo e num passo estava em frente a secretaria vazia. Havia ainda mais uma porta, cujo trinco só se abre por dentro. Então precisei esperar alguns segundos até que alguém aparecesse para abri-la para mim. Nada passava pela minha cabeça além de apressar logo o fim daquela tarde, depois de uma difícil manhã de segunda-feira. Aqueles segundos de espera foram vazios. O cheiro forte de queimadao deixava meu nariz cada vez mais seco. O ar ia ficando pesado, difícil respirar.

O estagiário da tarde olhou pelo feixe do portão. “Boa tarde, professor. Já soube o que aconteceu?”. O estagiário da tarde é um garoto duns dezesseis anos, aluno do Ensino Médio, responsável pela sala de informática. Não lembro seu nome. Já o chamei de Paulo e de Thiago e nas duas oportunidades ele prontamente me atendeu. Não sei se por educação ou se acertei seu nome em uma das vezes. Enquanto destrancava o portão e fazia sua pergunta, observei seus olhos escuros pelo feixe, um misto de tristeza e excitação. Num instante demorado uma inquietação na minha cabeça conseguiu finalmente concatenar as idéias do que estava acontecendo, como se sua pergunta me trouxesse pra realidade. Ouvi nitidamente o barulho da chave nas mãos do estagiário encaixar no cadeado e girar, permitindo que o trinco, num ruído agudo, fosse puxado e aberto por ele. Veio a mim de repente mais uma inquietação. Jamais ouvira aqueles ruídos, pois jamais aquela escola esteve tão silenciosa. Olhei para o chão, como de costume, e uma lama preta, muito preta, denunciava o que o estagiário queria me contar.

Na noite anterior atearam fogo na coordenação da escola. Vandalizaram a sala dos professores. E tentaram, sem sucesso, incendiar também a biblioteca. Assim mesmo, no sujeito indeterminado. As aulas estavam suspensas. Não havia alunos. Não daria mais aula naquela tarde. Não havia professores na sala dos professores. Não havia aulas nas salas de aula. Havia cinza.

Andei imediatamente na direção dos restos do incêndio. Livros e livros queimados. Documentos. Semanas, meses, talvez anos de trabalho de professores, coordenadores, funcionários e alunos. Muita cinza. Eu vi uma colega chorando. Disse que não se conformava ao ver os instrumentos da fanfarra da escola retorcidos pelas chamas. Disse que tinha até vendido rifa para comprá-los. Cheiro forte de queimado. Vi um inspetor desconsolado. Disse que em trinta anos trabalhando na educação nunca tinha visto nada como aquilo. Disse que tínhamos que fazer alguma coisa para retomar as aulas o mais rápido possível. Teto preto. Vi dois alunos muito sujos de carvão. Dois daqueles que aterrorizam a escola em dias letivos. Dois daqueles que fazem professores perderem a voz, que nos tomam horas nos conselhos de classe. Vi esses dois alunos carregando entulho em um carrinho de mão. Disseram-me, quando perguntei, que a escola era importante pra eles.