segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Os senhores na fila do banco


- Quem aguenta esse calor, hein?


Assim começou a conversa entre os dois senhores na fila do banco. Perdão, não há mais filas em bancos. Os dois senhores estavam sentados em cadeiras até que confortáveis, cada um com sua senha nas mãos. A diferença entre a fila antiga e a senha é o conforto de ficarmos sentados esperando o painel apitar nosso número. Mas acho que a fila antiga, aquela em que ficamos em pé fazendo um lento zigue-zague na agência, um atrás do outro, era um tanto mais interessante. As pessoas conversavam mais. Esse negócio de senha faz com que cada um se sente em uma parte do recinto, quase não há conversa. A pessoa que está ao seu lado esquerdo, ou direito, ou a sua frente, não é necessariamente aquela que será atendida imediatamente antes de você. Aí não tem nem graça puxar conversa. Não dá pra calcular o quanto ela pode durar, porque ela não vai durar todos os quarenta minutos que você tem pra gastar ali. Quando surge um assunto: PIM-POM, seu interlecutor se levanta e você não ouve o fim da história que ele contava.


Os dois senhores falavam sobre o tempo, cada vez mais louco. Na semana passada era fim de Primavera, mas fazia um frio descabido. Nesta semana, um senhor Sol. - Só porque é Segunda-feira o Sol aparece, chega sexta vem chuva, disse um deles. A conversa se estendeu. O segundo tema em pauta era a qualidade dos serviços prestados pelo banco. Esse tema é típico também. - Esses caras já não respeitam mais seus clientes. Não me lembro de ter sido respeitado um dia. Aliás, com a grana que eu dou de juros do meu cheque especial eu deveria ser tratado como celebridade no banco. Que nem o Casal Unibanco, se lembra? Deviam me servir um café. Um capuccino. O gerente saberia meu nome, ou falaria comigo olhando pra mim, e não pra tela do computador. Eu, no lugar dele, também não teria coragem de dar notícia ruim olhando nos olhos. Pior que isso, só médico de UTI. A conversa se estendeu e eles começaram a falar de futebol.


- Não dá pro Santos jogar recuado contra o Barcelona, pô. Os senhores concordaram sorridentes. E fizeram uma análise da escalação do time. Compararam jogadores de décadas passadas, discutiram empolgadamente a lealdade dos jogadores aos clubes. - Cadê o amor à camisa? Concordavam em quase tudo. Lembraram do Flamengo de 81, do São Paulo de 92, do Santos de 63. Os dois senhores conversavam como velhos amigos, como uma fresta de bem-estar que entre pela janela quase fechada daquela segunda-feira quente. Sequer perguntaram seus nomes. Esqueceram do juros que vieram pagar. PIM-POM.


- Foi muito bom conversar com o senhor. Até mais ver.


Um amigo disse que a senha pode ser uma aliada em algumas horas. Quando ele entra no banco aperta duas vezes o batão e a maquininha imprime duas senhas. Uma é dele. A outra ele vai entregar pra primeira menina bonita que entrar no banco desacompanhada. Vai sentar ao lado da mça e puxar assunto. Talvez sobre o tempo, ou sobre a péssima qualidade dos serviços bancários. Assim ele terá assunto, xaveco na verdade, para aqueles longos minutos. E mais, saberá quando a conversa vai ser interrompida pelo aparelho que apita a próxima senha.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Treze de Julho

Era uma terça-feira de julho. O dia tinha amanhecido chuvoso e assim permanecia. Um dia de chuva em pleno inverno. Fazia certo frio. Dentro do carro deixamos os vidros fechados para evitar a chuva e o vento. Às vezes tínhamos que abrir um pouquinho para desembaçar. Havíamos acabado de nos conhecer. Tudo era completamente novo, deliciosamente novo. Difícil explicar como fomos parar ali. Difícil lembrar o que fiz antes ou depois daquele momento, mas lembro de cada detalhe, cada sensação, cada gesto daqueles instantes eternos. Foi há um ano.

O lambrusco sem gelo já não era mais tão interessante. Interessante era a situação, as possibilidades que acenavam para nós dois. Eu me interessava. Ela se interessava. Foram uma ou duas horas de conversa. Não sei bem. Um papo furado que, visto daqui, parece uma estrada que nos levava a um destino melhor do que jamais haviamos imaginado. Não acredito em destino. Mas o acaso não seria capaz de ser tão sutil. Eu tentava calcular meus movimentos, minhas frases. Mas era tudo tão automático, tão espontâneo. Tentava olhar quando era olhado, sorrir quando ela pra mim sorria. Ela estava linda. Seu sorriso é fácil, como é fácil também adquirir sua maneira divertida de falar. Falamos de futebol, de música, de coisas em comum. Falamos, falamos, falamos. Rimos e sorrimos um para o outro. Sentíamos.

Procurava o instante certo. Queria tomar a iniciativa, encontrar o caminho. Desejava há algum tempo. Queria um sinal. O tempo passava e eu me angustiava por ainda não tê-la beijado. Toquei em seu joelho, quase sem querer, quando fui mudar a música do rádio. Deixei minha mão cair sobre sua perna, também sem querer. Ganhei um sorriso, um brilho nos olhos. Fiquei cheio de coragem e de desejo. Em troca ela tocou meus cabelos usando a desculpa de que ia arrumá-los. Senti sua mão em mim. Queria que aqueles instantes, aquela sensação, durassem para sempre. Inclinei-me na direção de sua boca enquanto também tocava em seus cabelos. Aliás, me apaixonei pelos seus cachos antes de me apaixonar por ela. Desde que a vi, apressada pra lá e pra cá com sua camisa dos Beatles, seus cabelos me encantaram. Sonhava tocá-los, sentir seu cheiro.

A noite caía fora do carro. Dentro amanhecia. A chuva perdia a força. Meus dedos percorriam suavemente seus cachos de baixo pra cima, como um pente. Eu inclinava meu rosto, olhando fixamente para seus olhos. Muito desejo. Não pensava em nada. Percorria lentamente os detalhes de seus olhos castanhos. Tentava decorar, para nunca mais esquecer. Ela permanecia estática, como se me esperasse. Eu sentia que esperava por aquilo a vida toda. Ela me olhava como ninguém. Eu a queria como ninguém. De fato não pensava em nada. Só me inclinava em sua direção. As bocas se tocaram, doces. Um gosto molhado, único. Um arrepio na espinha, uma palpitação. O desejo. O beijo demorado. Os corpos colados. A sensação da plenitude. As estrelas. O vidro do carro ainda molhado pela chuva. O inverno nos trazia vida. O amor. Treze de julho.



quinta-feira, 30 de junho de 2011

Segunda-feira de cinzas

Eram quase duas horas da tarde quando estacionei o carro em frente à escola. A rua, pouco movimentada como sempre, tinha um forte cheiro de queimado. Olhei ao redor pra tentar enxergar onde estava a fogueira, de onde vinha fumaça. Nada vi. Minha aula já estava para começar. Apressei-me em fechar o carro e pegar minha mochila. Só me faltavam duas horas para finalmente ir pra casa descansar. Entrei pelo portão amarelo e num passo estava em frente a secretaria vazia. Havia ainda mais uma porta, cujo trinco só se abre por dentro. Então precisei esperar alguns segundos até que alguém aparecesse para abri-la para mim. Nada passava pela minha cabeça além de apressar logo o fim daquela tarde, depois de uma difícil manhã de segunda-feira. Aqueles segundos de espera foram vazios. O cheiro forte de queimadao deixava meu nariz cada vez mais seco. O ar ia ficando pesado, difícil respirar.

O estagiário da tarde olhou pelo feixe do portão. “Boa tarde, professor. Já soube o que aconteceu?”. O estagiário da tarde é um garoto duns dezesseis anos, aluno do Ensino Médio, responsável pela sala de informática. Não lembro seu nome. Já o chamei de Paulo e de Thiago e nas duas oportunidades ele prontamente me atendeu. Não sei se por educação ou se acertei seu nome em uma das vezes. Enquanto destrancava o portão e fazia sua pergunta, observei seus olhos escuros pelo feixe, um misto de tristeza e excitação. Num instante demorado uma inquietação na minha cabeça conseguiu finalmente concatenar as idéias do que estava acontecendo, como se sua pergunta me trouxesse pra realidade. Ouvi nitidamente o barulho da chave nas mãos do estagiário encaixar no cadeado e girar, permitindo que o trinco, num ruído agudo, fosse puxado e aberto por ele. Veio a mim de repente mais uma inquietação. Jamais ouvira aqueles ruídos, pois jamais aquela escola esteve tão silenciosa. Olhei para o chão, como de costume, e uma lama preta, muito preta, denunciava o que o estagiário queria me contar.

Na noite anterior atearam fogo na coordenação da escola. Vandalizaram a sala dos professores. E tentaram, sem sucesso, incendiar também a biblioteca. Assim mesmo, no sujeito indeterminado. As aulas estavam suspensas. Não havia alunos. Não daria mais aula naquela tarde. Não havia professores na sala dos professores. Não havia aulas nas salas de aula. Havia cinza.

Andei imediatamente na direção dos restos do incêndio. Livros e livros queimados. Documentos. Semanas, meses, talvez anos de trabalho de professores, coordenadores, funcionários e alunos. Muita cinza. Eu vi uma colega chorando. Disse que não se conformava ao ver os instrumentos da fanfarra da escola retorcidos pelas chamas. Disse que tinha até vendido rifa para comprá-los. Cheiro forte de queimado. Vi um inspetor desconsolado. Disse que em trinta anos trabalhando na educação nunca tinha visto nada como aquilo. Disse que tínhamos que fazer alguma coisa para retomar as aulas o mais rápido possível. Teto preto. Vi dois alunos muito sujos de carvão. Dois daqueles que aterrorizam a escola em dias letivos. Dois daqueles que fazem professores perderem a voz, que nos tomam horas nos conselhos de classe. Vi esses dois alunos carregando entulho em um carrinho de mão. Disseram-me, quando perguntei, que a escola era importante pra eles.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Cansados das canseiras da vida

Bom quando encontro um tempo assim, entre uma aula e outra, uma prova e outra, uma dor de cabeça e outra. Muito bom quando ganho de presente uns cinco minutos de ócio. Dá até pra ler um jornal, passar o olho na televisão, telefonar pra namorada. Esse dia-dia é coisa de louco, correndo, correndo, correndo. Não desacelero nem dormindo, às vezes. É comum também não conseguir dormir na primeira tentativa. É comum amanhecer e abrir os olhos pensando que ainda é o mesmo dia anterior.

Eu me peguei pensando no que eu faço nesses intervalos, nessas horas de desaceleração. Acho o ócio muito produtivo. Aprendo muito com ele. Por exemplo, semana passada eu estava com uma janela. Espere, para quem não sabe, janela é o nome que professores atribuem para as aulas livres que se tem ao longo de um período. Na verdade não era uma simples janela. Era um portal de três horas entre uma aula de filosofia num segundo e primeiro ano. Sem saco para corrigir atividades e sem concentração para preparar uma aula, comecei a caminhar olhando as estantes da pequena biblioteca da escola em que trabalho a noite. Entre uma surpresa e outra, me deparei com uma prateleira só de poesia. Folheei Alves, Bandeira, Andrade. Distraído, me deparei com uma fotobiografia de Drummond. Está aí um poeta pelo qual me interessei de verdade. Fotos da sua vida, cartas. Fotos do poeta na escola, com colegas, professor, seus boletins. Achei linda uma foto do poeta bem velhinho, segurando um crucifixo de marfim na nas mãos. Li três ou quatro poemas famosos. E uma poesia que me valeu a noite:
O professor disserta
Sobre ponto difícil do programa.
Um aluno dorme,
Cansado das canseiras da vida.
O professor vai sacudi-lo?
Vai repreendê-lo?
Não.
O professor baixa a voz
Com medo de acordá-lo.


Passado as quase três horas o sinal estridente tocou, graças aos dedos gordos da diretora. Tocou num tom assustadoramente estridente, assim como para mim foram estridentes as palavras de Drummond. Fiz chamada e olhei para os rostos de meus alunos. Cansados das canseiras da vida. Escrevi esse poema na lousa e me sentei. Senti compaixão, como eles jamais sentirão por mim.



sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Boa Noite!

“Eu às vezes fico a pensar
Em outra vida ou lugar
Estou cansado demais
Eu não tenho tempo de ter
O tempo livre de ser
De nada ter que fazer”

Esse é um trecho da música do Marcos Valle, um compositor que fez algum sucesso nos anos setenta. O nome dela é Capitão da Indústria. Eu conheço a versão dos Paralamas do Sucesso, do disco “Hey, na, na”, de 1998. Tinha eu onze pra doze anos. Dizia que a música falava sobre meu pai, sobre um cara que trabalha demais, que não tem tempo pra si.

Esta noite estava voltando da escola em que dou aula, mais de onze horas, e essa música tocou no som do carro. Lembrei do meu pai. Senti o cansaço doer nas costas. Senti falta desse tempo de ter, do tempo livre de ser, ao qual a música se refere. Lembrei também da minha adolescência ociosa. Pensei nas coisas que deixei de fazer por falta de tempo. E nas que deixei de fazer só por deixar mesmo. Senti uma pontada de dor no ombro direito – dor de professor que usa muito a lousa - e segui dirigindo, apenas com a mão esquerda no volante.

Voltei pensando no que faria se tivesse uma semana completa sem nada pra fazer. Pensei numa viagem sensacional, mas esbarrei na falta de dinheiro. Liguei pra minha namorada, fui até a casa dela, e logo estávamos lá: dois cansados. Sem muita força sequer pra conversar. O olhar sonolento só lamentava a falta de tempo livre, mais tempo pra si e pro outro. Falamos sobre o sábado, sobre o fim de semana. Essa é a única forma de nos sentirmos menos piores: trabalhar muito para que o sábado chegue logo. Fizemos algum plano. E já não tínhamos maiores expectativas sobre a noite senão o sono.

Segui para minha casa. Ainda pensando no que faria se tivesse um mês sem nada pra fazer. Pensei nas férias. Pensei em uma viagem pro Rio de Janeiro. Pensei nas aulas de amanhã cedo. Pensei no feriado do carnaval. Pensei no pagamento que não vai dar para todas as contas. Aí me cansei de pensar. Entrei em casa, tomei um suco de manga, dei dois dedos de prosa pros meus pais, escrevi esse texto e... Boa noite!



segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Aquela pressinha

Eu acho graça quando estou indo embora e ela faz uma carinha triste, como quem pede pra que eu fique. Dá uma coisinha boa, sabe? Dá uma vontadezinha de ficar. Dá vontade de fingir que vou embora só pra ver aquela carinha. Às vezes se tem que ir mesmo, às vezes se vai e se arrepende. Como hoje. Como tantas noites. Nas noites em que se dorme sozinho tudo é pior. Se estiver frio, meu quarto vira o Alaska. Se estiver calor, ele vira o Saara. Não é possível dormir, não é possível pensar no trabalho, não é possível achar nada na internet e muito menos na TV. Não é possível não pensar nela.

Meu pai me disse: “É estranho esse negócio de vocês não conseguirem dar um passo separados”. Não é não, pai. Pra mim, estranho é conseguir. E eu tenho essa certeza nas noites em que me deito neste quarto. O olho no ventilador de teto, as mãos vazias. Sensação de vazio. É sozinho que pensamos nas coisas mais incríveis. É sozinho também que pensamos nas mais idiotas. E aí, numa noite quente e solitária, chego à conclusão de que sou completo. Como o vazio pode provar que sou completo? Isso é incrível ou idiota? Incrivelmente idiota.

Por isso, quando é hora de ir embora eu sempre fico um pouco mais. Ou fico até a manhã seguinte. Aquela carinha que me faz graça me mantém por perto. Gosto de dormir olhando pra ela, decorando seu rosto. Um amigo, não me lembro quem, mas algum amigo mais inteligente que eu, me disse uma vez que o amor está nas pequenas coisas. Ele tem razão. O amor não está nas grandes emoções, nos grandes acontecimentos. O amor está na rotina. O telefone que toca às quinze pras sete da manhã, pra dar bom dia. O almoço improvisado em uma pastelaria. Um beijo rápido antes de ir pra próxima escola. Até na briga está o amor. Aquela frase mal interpretada. Aquele ciúme que dá dor de barriga. Aquela preguiça de sair de casa, de acordar cedo. O amor está na falta de dinheiro, no sofá e na televisão. Está no caminho de casa, no beijo no ombro. Está na mão que segura firme, no olhar sereno. É aquela vontade de não trabalhar. Aquela coisa de não se importar com coisas sérias. Aquele strogonoff, aquele brigadeiro, aquele lanche da rua de trás. O amor é aquela pressinha.

Aquela pressa de viver ainda mais o que já se vive.



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Um texto antigo. Estou me esforçando pra voltar a escrever.