sexta-feira, 13 de agosto de 2010

11 de setembro

Era 11 de setembro. Mas não era 2001, quando o mundo ficou boquiaberto com a fragilidade dos fortes. Era 2006. Nesse dia o mundo não se espantou com nada, só eu me espantei comigo. Era uma noite quente e seca em Araraquara, como quase todas as noites daquela cidade são. Eu desci do ônibus no terminal central, já sentindo meu coração na boca. O barulho de motor de dentro do terminal se confundia com as batidas do meu coração. Eu estava adiantado, não precisava de pressa. A aula começava só às sete da noite e o relógio digital gigantesco da parada de ônibus indicava 18:30. Não precisava, mas nunca tive tanta pressa. Nunca senti um calor tão intenso como naquela noite. Passei noites quase vulcânicas naquele lugar, mas nenhuma me fazia suar tanto como aquela. Eu carregava a apostila na mão. A mão suada umedecia as páginas cheias de anotações, mapas e gráficos. Já nem agüentava mais olhá-los. Até hoje sei de cor cada parágrafo daquela porcaria. O tema da aula era demografia, a disciplina era geografia. E eu era um estudante de Ciências Sociais, com a barba por fazer, calça marrom e a minha melhor camisa, uma pólo vermelha que hoje está alaranjada de tão usada. Era a primeira vez na vida que eu enfrentava uma sala de aula. Pela primeira vez estava do outro lado do processo. E era 11 de setembro.


Tudo começou com um anúncio no mural da faculdade. Um cursinho popular da cidade selecionava professores de geografia. Eu nunca tinha dado aula, apesar de já vir me preparando pra isso. Nunca tive a pretensão de fazer outra coisa. Acho que nem saberia fazer. Fui até o pólo de informática e mandei um email. Pronto, estava inscrito. Precisava de dinheiro pra viajar nos finais de semana. Precisava saber se era aquilo mesmo que eu queria fazer. Na mesma semana se iniciava o processo seletivo. Recebi um email da coordenadora do cursinho e fiquei desesperado. Não havia prova escrita. A seleção se daria por uma aula-teste. Pra quem não sabe o que é isso, vou explicar. Trata-se de uma aula com um tema pré-determinado em que você fica na frente de coordenadores arrogantes que te fritam com os olhos enquanto você gagueja fingindo ter o mínimo de experiência naquilo que está fazendo. Depois eles te enchem de perguntas que você não sabe responder. Depois cochicham uns nos ouvidos dos outros. Depois você vai pra casa, decidido a tentar outra profissão. Enfim, passei nessa bagaça. Não sei como. Antes de mim vários colegas da faculdade, exímios debatedores nas aulas de Geografia, grandes oradores em assembléias estudantis, passaram pela mesma tortura e saíram de lá sorrindo. Mas eu, com minha voz trêmula e atropelada, saí da aula-teste com cara de atacante que perde pênalti e passei , eles não. Nunca vou entender os coordenadores. Dali uma semana eu descia do ônibus no terminal sentindo meu coração na boca.

Subi a rua em que se localizava o cursinho. Minha boca estava seca. É um prédio da Prefeitura com biblioteca, acesso a internet e uma sala de aula enorme, daquelas que o professor usa microfone, com espaço para umas cem pessoas. Lembro do suor na testa e das pernas que balançavam sem a mente mandar. Lembro da tentativa de me concentrar e parecer confiante em tudo o que ia falar. Ao entrar na sala vi cerca de 50 alunos. Não me lembro do rosto nem do nome de nenhum. Na verdade não via nada, estava tudo embaçado. Lembro só de uma loira de olhos claros que por alguns segundos me tirou a concentração. Lembro da minha gaguejeira e do microfone que não funcionava muito bem. Ainda hoje gaguejo muito dando aula, cometo erros de concordância e atropelo algumas palavras. Mas nada supera aquele 11 de setembro. O microfone que falhava era daqueles que prendem na cabeça, tipo da Madonna ou de atendente de telemarketing. Nas semanas seguintes fiz piadas sobre isso. Mas naquele dia falei sério, com voz de homem pra disfarçar minha meninice. Tinha deixado a barba crescer pra disfarçar meus 19 anos. Parecer mais velho sempre foi uma preocupação, preciso de credibilidade. Hoje minha preocupação é não parecer tão velho assim, também por uma questão de credibilidade. Falei durante 100 minutos, quase sem respirar. Acho que vomitei todos os conceitos de demografia que estavam milimetricamente decorados. Terminei a aula e senti dores pelo corpo, como quem leva uma surra de boxe. Caminhei de volta até o terminal pensando na aula e sentindo dor nas costas. Até que não foi lá tão ruim. Achava mesmo que ninguém tinha percebido meu amadorismo. Na aula seguinte eu já não suava e minha boca já não secava. Consegui ser menos sério e fazer piada da semana anterior. Graças àquela primeira noite, hoje minhas pernas não balançam mais ao entrar numa sala de aula e meus batimentos cardíacos permanecem estáveis. Mas devo isso àquela primeira noite. Era 11 de setembro e eu havia me tornado professor.


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